22 setembro 2006

Vidas I


Ela usava um chapéu preto. Descia os degraus suavemente, com cuidado. Pensava em cada passada como se fosse uma etapa diferente da sua vida. Mais um degrau, mais uma adeus sentido, mais uma fase da vida que encerrava para sempre no coração e aí guardaria até ao dia em que a cabeça lhe falhasse.

Um braço esticado para o corrimão, a mão a sentir pela última vez as emoções gravadas na textura da madeira ao longo dos anos. A outra mão, forte, segurava a carteira junto ao peito, onde trazia as recordações que não queria perder. Recordações que trazia presas ao coração.

O ranger da madeira debaixo dos pés parou quando desceu o último degrau. Então o som dos tacões baixos a bater no chão de mármore ecoou pela casa enchendo os corredores largos e vazios com uma melodia de compasso débil.

A casa estava vazia agora. Era demasiado grande para a sua alma solitária, e de qualquer maneira as pernas já comprometiam o sobe e desce rotineiro. Sabia que era a última vez que descia aquelas escadas. Ainda assim o que a incomodava não eram as suas limitações, nem a despedida do berço que partilhara durante tantos anos, mas sim a falta de vida na casa.

Abriu a porta para o jardim. Trazia um chapéu preto e um véu da mesma cor cobria-lhe o rosto. Segurava uma flor branca junto à carteira, uma prenda que levava para quem tinha abraçado durante tantos anos. Não valia a pena olhar para trás, tinha a imagem que veria gravada na memória. Desceu o degrau do alpendre, mais uma fase que encerrava para sempre no coração.

1 comentário:

ivamarle disse...

quando uma casa vai morrendo à nossa volta, deve ser mesmo muito triste, espero nunca vir a passar por isso...